09.09.2018

Novo imposto sobre consumo é para arrecadar, e não para fazer política fiscal

 

Quem vem acompanhando as entrevistas e pronunciamentos dos candidatos a presidente já percebeu que quase todos têm propostas parecidas para o sistema tributário. Normalmente, falam em substituir cinco impostos por um, para dar simplicidade ao sistema e ser mais transparente com o contribuinte. “Será um só imposto sobre valor agregado”, já disseram Geraldo Alckmin, candidato pelo PSDB, e Ciro Gomes, do PDT. Marina Silva e Fernando Haddad também já falaram sobre o tema, sempre defendendo ideias similares.

Pois não são propostas parecidas. São a mesma. Foi desenhada por um grupo de professores e acadêmicos chamado Centro de Cidadania Fiscal, conhecido pela sigla CCiF.

A ideia é, de fato, substituir cinco impostos por um. ISS, ICMS, PIS, Cofins e IPI seriam extintos e substituídos por um imposto sobre valor agregado (IVA, na gíria tributária), que o CCif vem chamado de IBS, sigla para imposto sobre bens e serviços.

“Não é um imposto para fazer política fiscal, é para arrecadar”, comenta o tributarista Eurico De Santi, professor da PUC de São Paulo e coordenador do Núcleo de Estudos Fiscais da FGV Direito SP. Ele é um dos autores da proposta, ao lado do economista e ex-secretário de política fiscal do Ministério da Fazenda Bernard Appy, do ex-ministro do Planejamento Nelson Machado, do tributarista e ex-auditor fiscal Isaías Coelho, também professor da GV, e da advogada Vanessa Rahal Canado. Em entrevista à ConJur, explicou o que diz a proposta, que pode ser lida aqui.

O uso da tributação para fazer política fiscal tem se tornado um problema, afirma De Santi. Com tantas competências sobrepostas para tributar o consumo, essa política invariavelmente resulta em guerra fiscal e faz com que os interesses das empresas girem em torno dos benefícios, conta o tributarista, hoje dedicado apenas a pareceres e à academia.

A proposta de transformar os impostos sobre consumo nasceu da ideia de criar um banco de ideias, ou think tank, no jargão do marketing, para estimular o debate público. E tanto De Santi quanto seus colegas de CCiF ouviram das empresas que o maior problema é o imposto sobre consumo: elas são as contribuintes, mas podem repassar os custos aos consumidores, em meio a um complicado sistema de créditos e cumulações.

De acordo com pesquisa feita pela Associação Brasileira de Processamento de Dados (ABDP) que será publicada nesta segunda-feira (10/9), 75% dos processos ativos de grandes empresas são tributários, área que recebe 68% dos recursos dos departamentos jurídicos delas. O CCiF foi criado há quatro anos, justamente para tentar mudar essa realidade.

A proposta já está na Câmara dos Deputados, mas ainda não foi discutida. O deputado Antonio Carlos Mendes Thame (PV-SP) apresentou emenda substitutiva à PEC 293-A/2004, que também trata de reforma tributária, para criar o IBS. De Santi está confiante que o próximo presidente encampará a PEC e que ela vai passar. “Temos a melhor reforma técnica”, diz.

A tributarista Lina Santini, sócia de De Santi, também participou da conversa.

Leia a entrevista:

ConJur — Como foi desenhada essa reforma?

Eurico De Santi — Bom, nos últimos 20 anos, 85% dos países que fizeram reforma tributária foram para um IVA 4.0, que é o nosso modelo. Ele foi estruturado a partir do modelo mais funcional internacionalmente, que é o da Nova Zelândia. Pegamos o modelo deles e adaptamos às questões brasileiras, fizemos uma lei simples, de cinco páginas.

ConJur — E a ideia já nasceu dessa forma, de imposto único?

Eurico De Santi — Depois de muito debate, o Nelson Machado deu a ideia de definirmos princípios antes de partirmos para o mérito. E chegamos ao princípio do Sinta: a lei tributária precisa ser Simples para o contribuinte, Isonômica, Neutra, Transparente e Arrecadadora (Sinta). Portanto, a reforma não vai mexer na carga tributária nem permite a concessão de benefício fiscal. É um imposto para arrecadar e quem paga é o consumidor.

ConJur — Se não mexe na carga tributária, o que vai fazer?

Eurico De Santi — Não é um imposto para fazer favor, para conseguir financiamento na eleição, nada disso. É um imposto para arrecadar. Hoje as pessoas não sabem quanto pagam. Você vai no mercado e pergunta quanto a pessoa pagou de ICMS, ela vai dizer que não pagou nada, porque quem paga é o mercado, embora o valor seja repassado. Você vai fazer um jantar, o arroz tem uma alíquota, a azeitona tem outra, a cebola tem outra, a cerveja tem outra, o vinho tem outra e ninguém sabe quanto está pagando. O que a reforma vai fazer é informar o cidadão sobre o que ele está pagando, e aí quem paga o imposto vai participar do debate do orçamento público. A gente tem que empoderar a cidadania, o eleitor, porque ele é o titular do exercício da legalidade e vai decidir quanto paga de tributo — sabendo o quanto paga, para quem e para quê.

ConJur — A proposta é unificar todos os tributos que incidem sobre consumo num imposto só, sobre valor agregado. Não é essa a proposta do deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR)?

Eurico De Santi — Hauly é um tremendo deputado, já foi governador, responsável pelo Simples, pela CPMF, enfim, um grande quadro. Mas é um político e fez uma proposta política, ouvindo as secretarias de Fazenda, a Receita, auditores fiscais, acomodando interesses dos governadores etc. A proposta dele centraliza a arrecadação na União, que ficaria responsável por distribuir. Esse tem sido o principal entrave dos últimos 50 anos: a federação é cláusula pétrea, e nenhuma proposta pode tender a abolir a federação. E a centralização da arrecadação pode ser encarada assim.

ConJur — Isso foi resolvido na proposta do CCiF?

Eurico De Santi — A partir de uma tese de Direito Constitucional do Dimitri Dimoulis tive o estalo de que precisava mudar esse sistema. Sempre que se fala em acabar com o ISS, os municípios reclamam, porque vão perder competência. Com o ICMS e os estados, a mesma coisa. E não se pode fazer emenda constitucional para reduzir a competência dos entes federados. Não quero diminuir a competência de ninguém, quero aumentar. Hoje a tributação do município está restrita a serviços, e eu vou no município e falo “com essa reforma, você vai poder tributar serviços e mercadorias e vai poder estabelecer a alíquota que quiser, arrecadar o quanto quiser e sobre uma base ampla — mas aí não vai mais poder reduzir a competência”. Com os estados, a mesma coisa, eu mostro que ele vai abrir mão do ICMS sobre alguns serviços, mas vai ter o IBS sobre todos os bens e serviços, com a alíquota que quiser. Para a União, mostro que ela vai abrir mão de PIS e Cofins sobre faturamento de pessoas jurídicas para poder tributar pessoas físicas e jurídicas. Com isso, toda a base tributária fica unificada, as competências de todos os entes federados aumentam e não há nenhum desrespeito à federação.

ConJur — Vai ter alguma regra de transição?

Eurico De Santi — Fizemos uma regra de dez anos, mais ou menos como a URV do início do Plano Real. Fizemos uma projeção por setor, das exportações e importações e chegamos à conclusão de que, para manter a carga tributária como está, a alíquota terá de ser de 25%: 14% para os estados, 9% para a União e 2% para os municípios. E seria a mesma alíquota para qualquer produto, mercadoria, capacete, carne, cerveja, carro, tudo.

ConJur — Como começou a reforma?

Eurico De Santi — Tivemos uma experiência com o Pedro Taques, que nos contatou para reformar a lei de ICMS de Mato Grosso, e percebemos uma série de estratégias para reduzir a complexidade. A lei tributária de São Paulo tem cem páginas. A de Mato Grosso tinha mil, fora os decretos e portarias, e a fizemos uma lei de dez páginas. Aí você vê onde dá para mudar: em São Paulo existem 267 possibilidades de multa. A mais usada, “nenhuma das anteriores”, é qualificada, 150%, que cai por falta de tipicidade. Fora as páginas e páginas de garante: se o comprador não paga, a transportadora paga, ou o dono do caminhão, ou o caminhoneiro etc. Limpamos tudo isso. Quem paga é o consumidor e quem consome mais paga mais.

ConJur — A mesma alíquota?

Eurico De Santi — Para todos os produtos. Não adianta criar alíquotas altas para relógio Cartier, porque quem compra essas coisas vai aos Estados Unidos e compra lá. Isso só cria desinformação para o consumidor e politiza setorialmente a carga tributária. Remédio tem isenção fiscal de ICMS, mas é a mesma para quem precisa e para quem não precisa.

ConJur — E como fica para as pessoas que efetivamente precisam de isenção fiscal, tipo quem precisa da cesta básica?

Eurico De Santi — Quem é mais pobre vai ter o imposto de volta. Foi uma ideia sensacional de um fiscal do Rio Grande do Sul chamado Giovani. A sugestão é criar um cadastro por CPF para pessoas de baixa renda. Então se você está nessa categoria, você compra o remédio e paga o imposto. Aí vai no site da Secretaria de Fazenda e informa o número da nota fiscal e recebe o valor do imposto de volta. E como será um cadastro, consigo saber exatamente quantas pessoas são isentas do imposto e calcular a alíquota com base nisso.

Lina Santini — É o que a gente chama de reforma da qualidade. Não é uma reforma para reduzir a carga tributária, mas para melhorar a qualidade do sistema de arrecadação. E, mesmo que a gente não mexa na carga tributária, com a reforma da qualidade é possível que empresas vejam uma economia no final das contas, porque o custo da conformidade é altíssimo.

ConJur — Como será o repasse?

Eurico De Santi — Não terá repasse, quem paga é sempre o consumidor. Se você compra para revender, toma crédito quando faz a revenda. Se exporta, não paga. Só paga quem ficar com o produto. E é totalmente não cumulativo, com a alíquota por fora. Se você compra R$ 200 de insumos e o imposto for de 25%, você se credita de R$ 50. Hoje o sistema é cumulativo, então é complicado fazer essa conta de crédito e débito.

ConJur — O que é “alíquota por fora”?

Eurico De Santi — Por exemplo, o ICMS sobre telefonia. É 25%, mas isso é repassado ao consumidor. Então, para ser 25%, o produto custa os outros 75%. Mas 25% sobre o preço real do produto, os 75, dá uma alíquota real de 33%. Isso é alíquota por dentro. A nossa proposta é que a alíquota seja incidente de maneira uniforme, em cima do preço do produto. Consumiu, incidiu. Portanto, todos pagam. E se todos pagam, todos pagam menos. Hoje, com as isenções, quem paga financia por quem não paga. É o rent seeking tributário, gente que vai nos vãos do sistema para ver como faz para não pagar imposto em determinadas situações. Onera quem não faz isso.

Lina Santini — Um bom exemplo da alíquota uniforme é o dos produtos da cesta básica. Há essa falácia de que eles precisam ter alíquota menor porque beneficia o pobre. Mas quem mais consome os produtos da cesta básica são os ricos. Então causa uma distorção.

Eurico De Santi — Exato, o cidadão não consegue fazer essa distinção, porque as informações não são transparentes. Nossa ideia é de um imposto não regressivo, que serve para arrecadar e não para fazer política fiscal nem para induzir investimento. Quanto mais diferença entre os produtos, mais complexidade. Hoje tem uma lista de serviços com 200 itens, existe essa discussão altamente teórica sobre o que é insumo e o que é mercadoria, uma loucura. O nosso imposto é um imposto sobre bens e serviços, que incide sobre tudo. Todo negócio operado no Brasil, toda prestação de serviço, será tributado com IBS. Consumiu, incidiu.

ConJur — Isso não vai aumentar a alíquota?

Eurico De Santi — Não, porque vai aumentar a base de contribuintes. Hoje, o sistema cumulativo criou muitos setores da economia que não são tributados, o que torna o imposto mais oneroso para quem paga.

ConJur — Claro, mas se o município precisar de dinheiro, vai evidentemente aumentar o imposto de 2% para 4%.

Eurico De Santi — Mas vai ter que aumentar para tudo, e por meio de lei. Portanto, vai ter que passar por um debate democrático. Não vai mais poder desonerar a cebola para incentivar o agronegócio da região. A gente desloca o debate sobre Direito Tributário para dentro de uma ótica política. Se o município quer aumentar a alíquota, vai ter que passar pela Câmara dos Vereadores, negociar com os representantes e obedecer ao princípio constitucional da legalidade — coisa que vem desde os barões de João Sem Terra, de 1215. É politizar o Direito Tributário por meio de uma ótica política de um debate sobre o tamanho do Estado. “Hoje eu pago X de imposto, mas não tenho saúde pública. É melhor aumentar o imposto e ter saúde para todos, ou reduzir o imposto e baratear os custos dos planos privados?”

ConJur — Questão de tempo até a carga tributária aumentar, então.

Eurico De Santi — Mas a grande questão é a transparência para o consumidor. Hoje, quando as empresas querem discutir carga tributária, vão à Fiesp. Com a nossa reforma, não. Se São Paulo decidir aumentar o imposto, vai aumentar o preço relativo de todos os produtos e pressionar a inflação. Ou seja, é criada uma tax competition [competição fiscal] virtuosa. Hoje os debates sobre tributos são muito “do topo para baixo”, e tax competition exige eficiência e transparência, porque você pode tributar menos se gasta o dinheiro com mais eficiência.

ConJur — “Tax competition” não é guerra fiscal? No auge da guerra fiscal, quando o Supremo começou a declarar os benefícios inconstitucionais, os estados falavam “eu sei que é proibido, mas estou comprando empregos”. O problema não continua com essa reforma?

Eurico De Santi — Não, porque o imposto vai para o estado e para o município onde o consumidor está. Não importa onde a empresa esteja. A economia se desmaterializou, é inteira digital. Não adianta mexer com alíquota, porque ninguém vai arrecadar mais. Por isso a ideia de um imposto que seja para arrecadar, e não para fazer política fiscal.

ConJur — Então não vai mais ter aquela coisa do uso extrafiscal da tributação?

Eurico De Santi — Não. Tem um dispositivo específico da PEC que proíbe concessão de benefício, redução da base de cálculo, fazer qualquer diferenciação entre bens e serviços. É o que o Isaías fala: a maré sobe e baixa igual para todos os barcos, então o imposto passa a ser neutro na economia.

ConJur — Agora, a proposta de reforma exclui PIS e Cofins, que são contribuições sociais com destinação para a Previdência. Como ficará essa questão da destinação, do financiamento das atividades do Estado?

Eurico De Santi — O que a gente fez foi um tributo único de base ampla, em que o dinheiro entra sem destinação. Depois o Orçamento é que vai ter que cuidar das destinações. Aí entra um processo civilizatório de participar das discussões orçamentárias, de cada município decidir isso conforme suas necessidades, se tem mais crianças em idade escolar, se é uma cidade dormitório, se é um distrito industrial, tudo isso influencia na definição do Orçamento. Essa não é uma definição para o sistema tributário, mas para o orçamento público. O dinheiro entrou? Agora os representantes vão discutir como ele vai ser gasto.

Nós no CCiF não somos políticos, somos técnicos. E temos a melhor reforma técnica possível. Não temos nenhuma intenção ideológica e não queremos dar uma azeitada no texto para passar. A legalidade tributária dos últimos 50 anos foi toda baseada em guerra fiscal, em levar indústria pra Barueri, Zona Franca de Manaus, tudo isso com incentivo fiscal e perda de arrecadação. E se eu politicamente concedo um benefício a um grupo, o interesse gira em torno disso e a política tributária não funciona.

Lina Santini — Os benefícios fiscais hoje se tornaram um problema até para as empresas, principalmente depois a decisão do Supremo sobre validação regime especial pelo Confaz, que também não se pronuncia corretamente. Para as empresas é melhor pagar o imposto e ter a segurança jurídica de que não vai ser cobrada depois por uma mudança de interpretação.

 

 

Fonte:

Pedro Canário – CONJUR
DIREITO TRIBUTÁRIO - KRAS BORGES & DUARTE ADVOGADOS


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